quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

UMA NO CRAVO...

“OS MAIAS”, UM ROMANCE DE VENCIDOS

Os Maias não são um romance de gente vitoriosa, pelo contrário, são um romance de gente vencida. Já para perto do seu final, Ega confessa a Carlos, o protagonista: “Falhámos, menino, falhámos”.
Ninguém escreve uma história tão longa de derrota se não se sentir também derrotado, e Eça havia de integrar em breve o grupo dos Vencidos da Vida. E não se esqueça que no grupo estava Oliveira Martins, que se suicidaria depois de uma anterior tentativa falhada, e que Antero se suicidaria pela mesma altura.
Sendo assim, não há que admirar que globalmente a obra seja de orientação negativa, pessimista. E é.
Cada ano que passa a sinto mais assim. E por isso não vejo que seja obra especialmente aconselhável para a juventude. E não será aconselhável também pelo seu tamanho e dificuldade.
Vou-me fixar agora num episódio do romance que em certo sentido é esclarecedor do derrotismo que o perpassa, o da corrida de cavalos.
Eça conta aí uma corrida de cavalos que decorre em Lisboa, para os lados de Belém, que na altura era um lugar muito despovoado. Foi aí, nas proximidades do Tejo, longe da cidade, que os organizadores, o Jockey Club, encontraram o mais aceitável espaço para o seu hipódromo improvisado.
Está-se por 1876 e Portugal estaria a dar os primeiros passos no desporto entendido em sentido moderno, chamemos-lhe o desporto de massas. Um clube desportivo como o Sport Lisboa e Benfica vem de uns 30 anos mais tarde.
Talvez Eça pretendesse evocar a primeira corrida de cavalos em moldes desportivos estrangeiros. De facto, ela é sempre avaliada por comparação com o que se faz lá fora; e da comparação sai-se muito mal. Lá fora neste caso é a França e a Inglaterra. Lá as pessoas eram muito mais ricas, tinham roupas adequadas para um evento destes, os prémios deviam ser mais atraentes, os cavalos de muito mais qualidade, os hipódromos bem preparados para o efeito: havia uma tradição de corridas. Aqui as pessoas vêm com roupas de missa ou desadequadas por outras razões, o hipódromo é pelintra, as bancadas são pelintras, os cavalos são fracos, chega a haver uma corrida de um só animal. Um fracasso.
Só que… Eça não tinha necessidade de expor esta miséria nacional nas páginas do romance; fê-lo porque quis veicular através dele a sua perspectiva derrotista sobre o nosso atraso.
Mas há pior: fica-se com a sensação de que o país era incapaz de organizar um evento do género. Ou, alargando a perspectiva, de que era incapaz para o desporto. Isto não é gratuito, pois o que está em causa é justamente o desporto moderno, de massas, como já disse.
Ora isto é falso: nós tivemos recentemente o Figo, temos o Ronaldo e o Mourinho, figuras de topo do desporto em qualquer lado. E somos bem capazes de organizar uma boa corrida de cavalos.
Quando chegamos à conclusão de que o autor falhou na mesnagem que quis colar ao episódio, passamos a distanciar-nos dele, a pôr-nos numa atitude de não aceitação passiva, o que é muito desejável. Foi esta a atitude predominante do próprio Eça, que tantas coisas pôs em causa.


DUAS CARICATURAS DE EDUCAÇÃO
É conhecido o tema da educação n’Os Maias. Estão lá em paralelo as educações do Carlinhos com a do Pedro da Maia e a do Eusebiozinho. Nos dois casos são apenas caricaturas de educação.
Na do Carlinhos, falta a presença activa do carinho materno: falta uma mulher de bom senso, que aparasse as asas a Afonso da Maia e promovesse uma séria educação moral e religiosa do pequeno. Que atitudes primárias ali se vêem!
Nas do Eusebiozinho e de Pedro da Maia, falta o contributo dum pai responsável, que abrisse às crianças as portas para um mundo mais vasto.

Nem todas as mães são beatas, pois há muita mais vida para além da beatice; nem todos os pais são comodistas, passa-culpas.
A esposa de Eça, por exemplo, que era católica praticante, era uma senhora cheia de bom senso, activa, uma educadora exemplar.

A educação de Carlos é um fracasso semelhante à do Eusebiozinho e à do Pedro da Maia, pois não o dotou dum sistema de valores que o conduzisse na vida e fizesse dele um cidadão útil. Como o Ega reconhece, Carlos falhou (e o Ega também). E não falhou devido ao meio ambiente, falhou desde jovem, pois desde jovem foi um boémio, dado a amores libertinos, sem nenhum respeito pela instituição familiar, que é basilar numa sociedade.

Esta caricatura, cheia de pessimismo, coaduna-se bem com o vencidismo que se apossara de Eça, manifestado no grupo dos Vencidos da Vida, a que ele pertenceu, se é que não promoveu.
O leitor é ali colocado perante duas propostas educativas, a tradicional, aplicada ao Eusebiozinho, e a «inglesa», aplicada ao Carlinhos. Mas ambas estas crianças acabam em cidadãos falhados, pessoal e socialmente. Como todos nós tivemos antepassados nesse tempo, eles deveriam ter sido educados por um ou outro destes modelos, logo seriam uns falhados e progenitores de falhados. E esse falhanço devia chegar até nós. O que é absurdo.
Isto é, o autor d’Os Maias está muito longe de ser aquele sábio perante quem nós não temos senão que dizer que acertou. Não, o seu olhar não era claro.
E se a alguém isto parecer pouco ortodoxo, vá dar uma olhadela a A Cidade e as Serras e a A Ilustre Casa de Ramiores e lá verificará que o mesmo Eça defende pontos de vista muito opostos aos d’Os Maias.
Nem Eça, nem Camilo, nem Pessoa, nem Saramago têm a verdade toda.
Muito antes deles, houve um poeta que disse: «Rasga meus versos!» Sem chegar a tanto, todos devemos contudo manter perante a literatura uma visão serena e sempre crítica. A verdade está quase sempre ao nosso lado, o que é preciso é procurá-la.


AS LOUCAS MULHERES D’OS MAIAS

Os Maias são um romance bastante masculino. Mas agora vamo-nos pronunciar sobre a qualidade humana das mulheres que nele ocorrem.
As mulheres deste romance são filhas directas do autor: é assim em qualquer história de ficção. Com excepção da irmã de Carlos, uma vítima das loucuras maternas, são todas caricaturas, o que as reúne num lamentável quadro, certamente ofensivo se tomado como retrato do panorama feminino português do tempo.
Vejamos uma lista, ainda que incompleta: Maria Eduarda Runa (“A sua devoção – a devoção dos Runas –, sempre grande, exaltara-se…”), Maria Monforte, Tia Fanny (um apêndice de Afonso que serve para diminuir a esposa deste), Gertrudes, a viscondessa (familiar de Afonso que aparece em S. Olávia), Ana Silveira, Eugénia Silveira, a Teresinha (“uma rapariguinha feia, amarela como uma cidra”), Mãe do Ega, Hermengarda, Encarnación, a Madame Rughel, a Coronela dos Hussardos, a Raquel Cohen, a Gouvarinho, Maria Eduarda, a Mélanie, Miss Sara, a baronesa de Graben…
Podemos reuni-las em grupos. Assim, são aparentadas Maria Eduarda Runa, a viscondessa, Ana Silveira, Eugénia Silveira e a mãe do Ega. Como se trata de mulher honestas, o autor caricaturou-as como beatas incorrigíveis e de vistas tão curtas que é de duvidar se tenham existido tais seres. São manifestamente estúpidas e velhas ou avelhentadas.
Depois temos o grupo da Maria Monforte e da filha Maria Eduarda. Conhecemo-las em jovens: são descritas como possuindo ambas uma beleza que estonteia; as aparições duma e doutra em Lisboa fazem grande alarido: são de facto também uma hipérbole.
Maria Eduarda Monforte, que era rica, começa sofrivelmente, mas carrega o mal que a há-de rebaixar: a desocupação e a leitura de literatura romântica. Lembrar Madame de Bovary.
A filha parecia mais equilibrada à partida, mas é empurrada para a miséria moral e também económica pelas loucuras da mãe. Envolvida mais ou menos em inocência no incesto com Carlos, resgatar-se-á depois.
Outro grupo é o da Raquel Cohen e da Gouvarinho. Estão ambas próximas da Maria Monforte ao não terem uma actividade útil a que se apliquem e ao deixarem-se deslizar para o adultério por divertimento: a Cohen fá-lo repetidamente, a Gouvarinho persegue Carlos com sofreguidão.
Em nível economicamente inferior, mas de semelhante jaez, está a Hermengarda; também se aparenta com esta a Miss Sara.
A Encarnación e a Lola e outras são um grupo à parte, constituído por prostitutas jovens, ao serviço de homens sem escrúpulos que lhes desfrutam a juventude.
O que é confrangedor é que num conjunto feminino tão numeroso não surja uma mulher moral e socialmente aproveitável. Isto é tanto mais gritante quanto o autor tinha agora dentro das portas uma jovem esposa de ideias claras, cheia de equilíbrio, apaixonada, excelente mãe de família e devota quanto convinha.
Nas corridas de cavalos, fala-se dum grupo feminino, que é rebaixado no aspecto físico, mas a que não é atribuída tão genericamente a vilania.


A DEDICATÓRIA D’OS LUSÍADAS

Vou recuar bastante no tempo, para o séc. XVI, pois pretendo falar da Batalha de Lepanto, que teve lugar em Outubro de 1571, e d’Os Lusíadas, que foram publicados no ano seguinte. O poema deve ter atingido a versão definitiva já no final do 1571, quando D. Sebastião, que nascera em 20 de Janeiro de 1554, ainda não teria completado 17 anos. Camões dedica-lho, mas fá-lo nuns termos que me parecem imperdoavelmente exagerados.
Rei desde os três anos, rei de facto desde os 14, D. Sebastião era em 1571 um jovem com um feitio não muito adequando à alta função que lhe cabia; mas repousavam sobre os seus ombros as esperanças de um Portugal independente, já que o próximo herdeiro do trono era o monarca castelhano. Era urgente que casasse, para poder ter herdeiros.
Face a estas condicionantes, é muito de estranhar o modo como Camões lhe fala na dedicatória da epopeia e depois nas estrofes finais do poema. Vamos recordar a dedicatória.
Depois de lhe chamar “bem-nascida segurança / Da Lusitana antiga liberdade”, o que estava certo, chama-lhe logo “certíssima esperança / De aumento da pequena Cristandade”, o que já não vinha muito a propósito, dadas as limitações económicas gritantes do país e as limitações do jovem rei. Mas o pior vem depois em catadupa: chama-lhe “novo temor da maura lança” (isto é, dos reinos mouros em geral, incitando-o à guerra), chama-lhe “poderoso Rei, cujo alto Império / O Sol, logo em nascendo, vê primeiro, / Vê-o também no meio do Hemisfério, / E quando dece o deixa derradeiro” (ao modo do que se dizia do seu tio Carlos V), e sobretudo diz do moço rei que se espera dele “jugo e vitupério / Do torpe Ismaelita cavaleiro, / Do Turco Oriental e do Gentio / Que inda bebe o licor do santo Rio”. Isto é, mostra-lhe um campo de acção guerreira que vai da África do Norte ao império otomano e a toda a Índia.
Isto é de facto autêntica loucura. E a proposta é confirmada, ao menos em parte, no final do poema, quando o poeta o incita o jovem rei à guerra no Norte de África, dispondo-se a cantar-lhe nova epopeia com os feitos bélicos que aí praticasse. O Rei acabaria por ir e ficar Alcácer-Quibir, perdendo o país a independência.
É difícil de não concordar com a gravidade destas incitações irresponsáveis à actividade bélica, ainda por cima saídas da pena de quem tinha algum conhecimento do que era o campo da batalha.
Eu creio que actualmente a tendência é para reconhecer que Camões é mais genial na Lírica (sonetos, canções, éclogas, redondilhas, etc.) do que n’Os Lusíadas. De facto, a meu ver, a epopeia não responde satisfatoriamente a muitas questões que lhe podem ser dirigidas.
Disse atrás que a epopeia há-de ter ficado pronta talvez no final de 1571, mas pelo menos alguns meses antes de vir a público, pois o trabalho tipográfico na altura devia ser muito lento.
Nesses meses a cristandade católica estaria sob o efeito da grande, da extraordinária vitória obtida em Lepanto, em Outubro de 1571.
O sultão de Constantinopla prometia entrar a cavalo pela Basílica de S. Pedro, que então ainda não estaria bem terminada. A sua soberba era uma ameaça a que era urgente pôr algum cobro.
Depois de muitas negociações e dificuldades, lá se reuniu uma frota para enfrentar os turcos. A batalha decorreu junto a Lepanto, a sudeste da Grécia. Comandou a armada D. João de Áustria, um parente próximo de D. Sebastião, pois era filho, embora bastardo, do irmão da sua mãe, Carlos V. A frota turca era comandada por Ali-Pachá, que foi morto, e a vitória católica foi grandiosa. Nem é bom pensar nas consequências que uma derrota poderia ter provocado…
A minha ideia é a de que Camões terá acreditado que D. Sebastião iria gozar, nas aventuras militares, duma protecção divina semelhante à que possibilitara a decisiva vitória do seu primo D. João de Áustria. Assim, certas afirmações da dedicatória fariam muito sentido; sem isso, não vejo que sentido façam.
Sobre a batalha de Lepanto, contam-se coisas extraordinárias. Por exemplo, que Nossa Senhora teria sido vista sobre a frota turca numa atitude que não augurava nada de bom; que o Papa Pio V, em Roma, sem receber notícia nenhuma de Lepanto, por altura da vitória, teria convidado os cardeais a irem agradecer com ele a Deus o êxito católico. A essa batalha está também associado o incremento da oração mariana do terço.

Que escândalo! Que escândalo!

Uma carta de Eça a Ramalho Ortigão


Newcastle 10 Novembro 78

Meu querido Ramalho

Como são belas as promessas escritas no papel! Vai-se à Exposi­ção - mas quer-se ver o amigo íntimo! Sem o amigo a Exposição seria tão pouco saborosa como a Feira das Amoreiras. Que o amigo íntimo venha a Paris... Mas tal é o desejo de o abraçar - que se ele não puder vir a Paris ir-se-á a Londres! E mesmo, que diabo, se ele não vier a Londres, ir-se-á a Newcastle! Mas que se abrace o amigo íntimo! Exclama-se: «É necessário que nos encontremos em qualquer ponto do mundo!» significando-se que se está pronto para o ver a trepar aos píncaros do Himalaia, ou a descer aquelas profundidades oceâni­cas onde habita a pieuvre e o galeão de Vigo! - Depois parte-se, com uma chapeleira e com o Eduardo Coelho! Chega-se ao Havre, onde outrora o grande Brummel, deus do dandismo, foi vice-cônsul! E enfim avista-se a luz eléctrica da Place de l'Opéra - espanto e confusão da burguesia de dois hemisférios. E desde esse dia, Un silence parfait régne dans cette histoire... Então volta-se, der­reado de admiração, e faz-se ouff! ao depor a chapeleira a um canto duma vivenda, na Cruz Quebrada. Os dias passam, o glorioso Tejo defronte evapora amor da pátria, o nome do viajante repimpa-se ao comprido da local, reclinado a adjectivos fofos, - e uma manhã, ao abotoar a braguilha, exclama-se, com um berro de vergonha e de dor:
- Oh diabo, que lá esqueci o amigo íntimo!
Quem foi que escreveu um tratado estimável sobre a Amizade? Cícero ou Séneca? Em qualquer caso na impossibilidade de remeter a um desses literatos este caso, como material para um capítulo misan­tropo sobre a solidez da amizade em viagem - corramos um véu teci­do de benevolência e bordado a perdão sobre este episódio cómico.

Passo ao segundo ponto da minha carta. Conhece Você, nos jun­cais do Porto um tigre por nome Chardron? Essa fera escreveu-me há tempos, dizendo d'un ton paternel que ia encomendar a minha biografia a um literato da capital. Fiquei azul de pavor. Vê Você, daí, Gervásio Lobato fazendo variações sobre o meu nascimento? Escre­vi para os juncais do Porto, melifluamente, dizendo que seria inútil incomodar um génio, com um assunto tão terre-à-terre; que verdadeiramente havia só um homem que, com conhecimento, poderia escrever a minha história - e esse homem era... Como o sabia a Você seguro em Paris, citei-o a Você - porque tinha de citar um nome. O tigre reentrou na caverna. Eu respirei. Há duas semanas, vem-me do Porto um grande grito de júbilo, que se traduz assim – o homem chegou, Ramalho está, Ramalho vai escrever a Biografia, e Ramalho quer publicar o que escreveu nas Farpas sobre o Padre Amaro com mais alguma curiosidade biográfica, salpicada em inter­valos. - Em presença deste facto - eu só tenho a dizer: Suspendei, senhor!Raciocinemos. O artigo sobre o Amaro era uma interpretação do meu talento feita pela sua amizade: julga V. que a minha nova edi­ção do Amaro deve abrir por um esplêndido elogio, feito, como ele os sabe fazer, pelo meu melhor amigo? Não. Portanto, querido Ramalho, combinem quelque chose de mieux. Se V. aceita a enco­menda da minha biografia - não se esqueça de que ela é publicada num livro meu, e que o País todo, e as terras de Santa Cruz sabem que nos liga uma amizade fraterna. Qualquer elogio - seria incitar o leitor - di cá ou di lá a rosnar, escabichando o dente: - Compadres!
Faça portanto alguma coisa de curto, seco, sóbrio, - como se se tratasse de si mesmo.
Dados para a minha biografia - não lhos sei dar. Eu não tenho história, sou como a República do Vale de Andorra. O tigre Char­dron exclama: - Mande-lhe todos os documentos. Que documentos, meu Jesus? Eu só tenho a minha carta de bacharel formado. Qué-la? O mais regular seria fazer a história da minha literatura: é escasso, bem sei, mas é correcto. De resto devo dizer-lhe que O Crime do Padre Amaro é um romance novo: do romance que Você leu só fica o título: o mais, linha por linha, sofreu uma tal transformação que esta edição diverge tanto da primeira como o D. Quixote da Henriade: este símile é para marcar a quantidade de diferença, não a diferença do género. Fiz bem, ou mal - em refazer assim um velho romance? Obedeci a uma espécie de instinto - e o caso é que vai você ver um estranho trabalho.
Portanto ficamos entendidos: biografia sem elogio, é o motto. Se se tratasse dum artigo para uma revista eu então francamente pro­poria outro motto: - Elogio sem biografia.

Vamos agora ao terceiro ponto da minha carta: mas antes de mais, abra essa epístola para o Corvo e leia. Eu no entanto acendo um cigarro... - Leu? Que lhe parece?
Explicar-lhe-ei primeiro por que concebi o livro - depois por que escrevi ao Corvo.
Concebi o livro, uma tarde, em casa duma senhora, estando só com ela; ela tocava ao piano a gavotte favorita de Marie Antoinette - e eu ao pé do lume acariciava um cão. De repente sem motivo, sem provocação - lembrou-me, ou antes flamejou-me, através da ideia, todo esse livro tal qual o descrevo: singular, não? Fiquei aterrado: supus ser ou um pressentimento, ou uma visão. Depois a minha segunda exclamação mental foi esta: - que escândalo no país!
Você - conhece-me - e está aí a ver que me despedi da senhora, e vim para casa, lançar o esboço do escândalo para o país. É simples­mente o que eu quero fazer: é dar um grande choque eléctrico ao enorme porco adormecido (refiro-me à pátria). Você dirá:
- Qual choque! Oh ingénuo! o porco dorme: podes-lhe dar quan­tos choques quiseres com livro, que o porcohá-de dormir. O destino mantém-no na sonolência, e murmura-lhe: dorme, dorme, meu porco!
Perfeitamente: mas eu estou-lhe a dizer o que pretendo fazer – e não que o país fará: naturalmente, continuará a dormir: veremos. - Além do escândalo - quero dinheiro. Se o Primo Basílio se vendeu - por que se não há-de vender a Batalha do Caia? Cuida V. que lhe hão-de faltar os episódios picantes, lúgubres, voluptuosos, épatants? Pas si bête. Há-de ter de tudo: um salmis d'horreurs. O burguês gosta da rica cena de deboche? Há-de tê-la: somente desta vez é a sua própria filha violada, em pleno quintal, pelo brutal catalão dos dragões de Pavia: - a sua própria filha, a quem outrora Bulhão Pato murmurava: Lembras-te ainda dessa noite, Elisa? Portanto - se o livro se vende - por que não hei-de fazer especulação e tratar de pagar as minhas dívidas? Donc, résumons: choque eléctrico ao porco, e dinheiro para bebé (bebé c'est moi).
Agora para que escrevi ao Corvo: é que a coisa é séria; eu sou um empregado do Governo - e um tal livro é grave: o episódio dos dois compatriotas inteligentes não é inventado: eu li o esboço ao Vaz, rapaz distinto, nosso attaché em Londres: estou a vê-lo no meu sofá, com as mãos apertadas na cabeça, murmurando com um ar azabumbado: - Que escândalo! Que escândalo! - Quando eu cheguei ao capítulo (li-o no plano-argumento) da fuga do rei, e da anarquia em Lisboa - o rapaz ergueu-se, pálido:
- Oh amigo! Oh amigo! Et il avait des larmes dans la voix!Despediu-se de mim, dizendo com um tom lúgubre: - Queime isso! Queime isso!
Não quero, portanto, que o Corvo me possa dizer depois - V. não tinha direito a publicar semelhante livro.
Mas há outra razão para eu escrever ao Corvo - é que este traba­lho representa para mim capital: e se ao ministério regenerador não convém que se diga de antemão, o que há-de acontecer em breve - e se me força a inutilizar um capital, deve indemnizar-me. Isto é claro como o bom Bordeaux. Não lhe parece? Talvez V. não ache estrita­mente moral: responderei como Darwin: - na luta da vida ser fraco é quase ser culpado.
Agora direi para que lhe mandei a carta ao Corvo: para que você a leia - e decida, compenetrando-se da amizade que nos une há tan­tos anos, o que tem de melhor a fazer para me levar este caso a bom caminho - isto é torná-lo o mais rendoso possível para bebé (bebé c'est moi). Se Você pensa que não deve aparecer neste episódio, passe o lábio pela cola do sobrescrito, assente-o com a palma da mão, e meta-o numa carta dizendo: - «O Queiroz pede-me para lhe remeter esta carta».
Se V. entende que deve, num assunto - que é de política, de Arte e de interesse para mim, ir falar-lhe, põe o chapéu, et va chez lui. O homem lê diante de V., a pedido seu.
E então, uma de três:
Ou diz, rindo: - que diabo, diga ao Rapaz que pode publicar, é inteiramente inofensivo! - Nesse caso, você aperta-lhe a mão, e exclama: - Essa palavra, Exmo Sr., é dum grande Estadista! - E sai pela porta do fundo.
Ou o Corvo hesita, faz beiço, coça a cabeça, e mostra-se, como dizia um amigo meu - esquisito em quanto à resolução. Você, então, toma o seu tom mais filosófico, e diz:
- O Queiroz está absurdo: publicar um tal livro é fazer um escân­dalo internacional: é revelar a nossa fraqueza, a nossa desorganiza­ção: é despertar o ódio vago do país contra alguém que lhe criou uma situação donde pode sair uma tal catástrofe. Esse alguém que ele procura para odiar - aparecer-lhe-á sob a forma visível de quem tem neste momento o poder: Rei e Regeneradores... Etc., etc. Por­tanto o melhor é dizer ao homem que queime o livro: mas como o livro representa um capital, é necessário que o moço não perca tudo - glória e proveito. Mande-lhe V. Sa abonar uma certa quantia (carre­gue na quantia: de conto e quinhentos a dois contos).
Suponhamos, porém, que ele diz: - não! nunca! Proíbo-o que publi­que semelhante coisa! - Você então toma um ar à Robespierre, e diz secamente: - Perfeitamente: é como obrariam os Cabrais; eu vou daqui fazer um escândalo nacional. É o fim da liberdade de imprensa, de opinião e de consciência. E o Syllabus, etc. (Você conhece a tirada.)
Ao menos - acrescente V. - é da mais estrita justiça que já que lhe proíbem - que publique os seus livros - se considere que esses livros representam trabalho e que se lhe pague portanto esse trabalho! Etc. (Vous savez qu'il y a une autre tirade sur cela.)
Agora diz Você:
- Mas no fim, o que quer o menino, que a coisa se publique, ou se não publique: venha sa pensée intime.
Ma pensée intime
é esta: que o livro (sendo útil como um meio de mostrar ao país as consequências de prolongar uma tão horrorosa condição de abaixamento) - é, por um lado inoportuno, por outro um ataque de folha em folha à vizinha Espanha: e serve portanto apenas para criar irritação. Por isso era melhor talvez que se não publicasse. Por outro lado - perder tais episódios literários? Oh menino! Pois não poderei eu dar à publicidade uma descrição de Lisboa em anarquia: as igrejas cheias de mulheres aflitas, as improvisações dos batalhões voluntários, os Bancos quebrando, a falta de trabalho organizando insurreições diárias, o pânico na secretaria, o burguês da Baixa em presença da catástrofe? Não poderei publicar a descrição da Sexta-feira da Paixão - em que se sabe em Lisboa que o Morning Post publicou o tratado entre as potências pelo qual a Alemanha anexa a Holanda, a França, a Bélgica, a Rússia, toda a Roménia, a Áustria, a Bósnia, a Itália, Fiume - e que a Inglaterra, isto é, Lord Beaconsfield, já no seu leito de morte, em presença da medonha demonstração de Londres, declara a guerra à Europa? É daqui que vem a Conflagração Europeia - e a invasão. Tudo isto é de boa literatura. Portanto eu queria ver a coisa impressa. Mas se o escândalo é tal que o Governo tem de me désavouer, Ah! amigo, a coisa é grave. O que resta é isto - e aí vai ma pensée intime - é que a ideia publicada ou inédita é um capital: esse capital tenho direito a ele, que me venha do Chardron (ou do público, melhor) pela publicação, ou que me venha do Governo pela proibição - é-me indiferen­te: e Você está por esta encarregado de fazer produzir capital à ideia.
Amigo, leia com atenção este volumoso documento - e responda logo o que fez, e o que se decidiu. O que eu não quero é que a ideia fique improdutiva.

Passo agora ao último ponto da minha carta - e é pedir-lhe que ponha os meus respeitos aos pés de Madame Ortigão, que mande um abraço ao bravo Jeco quando lhe escrever, e que beije por mim as mãos das suas filhas.
E abraço formidável do
Seu do C.
Queiroz

P. S. Leu por acaso o começo da Capital? Que lhe parece: mande frase que classifique, e diga se há progresso.

P. S. importante: - É indispensável que o Corvo nem por sombras suponha que o que se quer é extrair-lhe uma quantia: porque real­mente não é, e a prova é esta:
Do Primo Basílio venderam-se 3000 ex. que eu saiba: mas isto não quer dizer nada: o que importa mais é que o Chardron que manda da Capital só para o Brasil 3000 ex., da Batalha do Caia podem sem receio tirar-se 9 ou 10 000 exemplares. Vendidos a 500 rs. já V. vê que é uma especulação.
Portanto ao Corvo fala-se só em consentir e não consentir: se ele não consente - exclama-se: - Como! mas eu vim aqui, supondo que V. não podia de modo nenhum impedir, etc. O meu pedido era ape­nas uma formalidade! Veja que dinheirão o moço perde! É uma infâ­mia! Etc.
E sobre tudo isto, sigilo!


Uma vez dizia uma professora, a respeito desta carta e documentos semelhantes, que se deviam fazer desaparecer da biografia dos escritores. Que bom modo de criar postumamente homens honestos!
Porque o que está aqui é o jeito satânico do Ega d'
Os Maias… O jeito dum homem que quis fazer uma crítica envolvente ao seu país. O jeito dum homem que se propôs criticar quase tudo, mas que criticou mal, há que o dizer.
Ele não viva na realidade… A realidade pede honestidade… não este tipo de subterfúgios.
Cego guiando cegos…
O dinheiro! Há gente que se governa com tão pouco e Eça não se governava com o ordenado de cônsul? Precisaria ele de ser um Jacinto? Ou um Carlos da Maia? … Ou um Raposão?... Ou um mandarim?
“E sobre tudo isto, sigilo!” “Que escândalo!”