segunda-feira, 29 de outubro de 2012

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Tendo ensinado durante muitos anos programas de Português, chegámos a algumas conclusões sobre diversos textos literários que nos parecem um pouco originais. Pretendemos partilhá-las aqui com colegas e alunos.

Nalguns casos, essas conclusões estão já em linha noutras páginas, mas nesta daremos conta delas de um modo mais ou menos sistemático, ordenado.

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Blasfémia e imoralidade na poesia de Fernando Pessoa


Não são muito frequentes os poemas de Fernando Pessoa que agridem frontalmente o cristianismo nem sequer os que agridem normas elementares de moral. Mas há alguns e às vezes usam uma violência inesperada. Tais agressões algum débito hão-de ter para com o republicanismo do tempo, contra o qual a sua educação religiosa infantil o não conseguiu imunizar.
Vamos tecer aqui algumas considerações sobre este tema, limitando-nos aos poemas mais divulgados.

A blasfémia

A blasfémia de Fernando Pessoa dirige-se principalmente contra Cristo, não tanto contra Deus como tal. Está logo no poema Liberdade, que deve ser um poema bastante antigo, talvez anterior aos heterónimos. Remata assim: 
Grande é a poesia, a bondade e as danças...  
Mas o melhor do mundo são as crianças, 
Flores, música, o luar, e o sol, que peca 
Só quando, em vez de criar, seca.  

O mais que isto 
É Jesus Cristo, 
Que não sabia nada de finanças 
Nem consta que tivesse biblioteca... 
A observação de que Jesus “não sabia nada de finanças” é intencionalmente blasfema, mesmo que se deva ter em conta que Ele tinha as limitações da sua condição humana.
Pensamos que a Mensagem pretendeu ser uma espécie de evangelho apócrifo, uma alternativa sebastianista a Cristo redentor. O poeta assume-se como profeta a quem Deus se revelou – dedit nobis signum – e que anuncia um caminho novo de redenção, que, por Portugal, é também para o mundo.
Embora ocorram no poema textos aparentemente repassados de cristianismo aceitável, versos como estes, das Quinas, na primeira parte, devem-nos precaver contra ingenuidades: 
Foi com desgraça e com vileza 
Que Deus ao Cristo definiu: 
Assim o opôs à Natureza 
E Filho o ungiu.
Na poesia de Alberto Caeiro, é principalmente naquele poema VIII, sobre o Menino Jesus, que ele diz as maiores enormidades blasfemas contra Cristo, mas também contra Deus Pai, Deus Espírito Santo e a Virgem Maria. Até porque uma vez, por uma razão relativamente fútil, o poeta se distanciou deste texto, optamos por não o citar.
Ricardo Reis, o discípulo de Epicuro e seguidor de Horácio, menciona Cristo várias vezes, sempre em atitude de bastante claro desprezo, negando-lhe o seu lugar de Filho único de Deus. Um dos poemas começa assim: 
Não a ti, Cristo, odeio ou menosprezo 
Que aos outros deuses que te precederam 
Na memória dos homens.  

Nem mais nem menos és, mas outro deus.  
No Panteão faltavas. Pois que vieste 
No Panteão o teu lugar ocupar,  

Mas cuida não procures  
Usurpar o que aos outros é devido. 
Teu vulto triste e comovido sobre  

A stéril dor da humanidade antiga 
Sim, nova pulcritude 
Trouxe ao Panteão incerto. 
Uma vez fala dos “crentes em Cristos e Marias”, outra no “idólatra exclusivo de Cristo”. Os poemas que citamos são de 1916.
É curioso que, no seu paganismo de raiz greco-romana, Ricardo Reis nunca dirija uma oração aos seus deuses recuperados. 
Na poesia do moderno e às vezes tresloucado Álvaro de Campos, que uma vez menciona uma carta de S. Paulo (“Primeira Epístola aos Coríntios”), que tem poemas intitulados Pecado original e Magnificat, que usa uma vez a expressão litúrgica latina Sursum corda, não ocorrem frequentes referências a Cristo nem blasfémias em sentido estrito. Encontram-se na sua poesia até reflexões bastante sérias, embora negativas, sobre o tema religioso.
A agressão blasfema atinge sobretudo aqueles que têm fé, pois que a blasfémia pura, contra entidades sagradas por parte de quem crê, deve ser coisa rara. Sendo assim, as blasfémias de Fernando Pessoa, como as de Saramago, são principalmente coisa de mal-educados.

Imoralidades

Nas Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, escreve Fernando Pessoa estes horrores: «Álvaro de Campos não tem sombra de ética; é amoral, se não positivamente imoral (…) A ideia da perda da inocência duma criança de oito anos (Ode II, ad finem) [Ode Triunfal] é-lhe positivamente agradável, pois satisfaz duas sensações muito fortes – a crueldade e a luxúria».
Leia-se esta amostra da Ode Marítima, onde há coisa pior:
Ah, ser tudo nos crimes! ser todos os elementos componentes  
Dos assaltos aos barcos e das chacinas e das violações!  
Ser quanto foi no lugar dos saques!  
Ser quanto viveu ou jazeu no local das tragédias de sangue!  
Ser o pirata-resumo de toda a pirataria no seu auge, 
E a vítima-síntese, mas de carne e osso, de todos os piratas do mundo!  
Ser o meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres  
Que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas pelos piratas!  
Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser deles 
 E sentir tudo isso - todas estas coisas duma só vez - pela espinha! 
Esta postura aberrante da Campos, que percorre os seus poemas sensacionistas-futuristas, é paralela a outras atitudes de semelhante teor presentes nos poemas de Alberto Caeiro e Ricardo Reis.
No poema Ontem o pregador de verdades, o «mestre» Caeiro exprime-se assim: 
Haver injustiça é como haver morte. 
Eu nunca daria um passo para alterar 
Aquilo a que chamam a injustiça do mundo.
Ricardo Reis por seu lado revela-se ainda mais selvático. Na ode Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia, dois jogadores de xadrez prosseguem a sua partida, mesmo sabendo que a destruição e a morte campeiam na sua cidade que o inimigo invadiu. E sentencia este heterónimo epicurista: 
Quando o rei de marfim está em perigo 
Que importa a carne e o osso 
Das irmãs e das mães e das crianças? 
Quando a torre não cobre 
A retirada da rainha branca, 
O sangue pouco importa. 
Isto é fratricida: nenhuma estética pode sobrepor-se a uma solidariedade elementar.
Do ortónimo não conhecemos barbaridades semelhantes.