quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

UMA NO CRAVO...

“OS MAIAS”, UM ROMANCE DE VENCIDOS

Os Maias não são um romance de gente vitoriosa, pelo contrário, são um romance de gente vencida. Já para perto do seu final, Ega confessa a Carlos, o protagonista: “Falhámos, menino, falhámos”.
Ninguém escreve uma história tão longa de derrota se não se sentir também derrotado, e Eça havia de integrar em breve o grupo dos Vencidos da Vida. E não se esqueça que no grupo estava Oliveira Martins, que se suicidaria depois de uma anterior tentativa falhada, e que Antero se suicidaria pela mesma altura.
Sendo assim, não há que admirar que globalmente a obra seja de orientação negativa, pessimista. E é.
Cada ano que passa a sinto mais assim. E por isso não vejo que seja obra especialmente aconselhável para a juventude. E não será aconselhável também pelo seu tamanho e dificuldade.
Vou-me fixar agora num episódio do romance que em certo sentido é esclarecedor do derrotismo que o perpassa, o da corrida de cavalos.
Eça conta aí uma corrida de cavalos que decorre em Lisboa, para os lados de Belém, que na altura era um lugar muito despovoado. Foi aí, nas proximidades do Tejo, longe da cidade, que os organizadores, o Jockey Club, encontraram o mais aceitável espaço para o seu hipódromo improvisado.
Está-se por 1876 e Portugal estaria a dar os primeiros passos no desporto entendido em sentido moderno, chamemos-lhe o desporto de massas. Um clube desportivo como o Sport Lisboa e Benfica vem de uns 30 anos mais tarde.
Talvez Eça pretendesse evocar a primeira corrida de cavalos em moldes desportivos estrangeiros. De facto, ela é sempre avaliada por comparação com o que se faz lá fora; e da comparação sai-se muito mal. Lá fora neste caso é a França e a Inglaterra. Lá as pessoas eram muito mais ricas, tinham roupas adequadas para um evento destes, os prémios deviam ser mais atraentes, os cavalos de muito mais qualidade, os hipódromos bem preparados para o efeito: havia uma tradição de corridas. Aqui as pessoas vêm com roupas de missa ou desadequadas por outras razões, o hipódromo é pelintra, as bancadas são pelintras, os cavalos são fracos, chega a haver uma corrida de um só animal. Um fracasso.
Só que… Eça não tinha necessidade de expor esta miséria nacional nas páginas do romance; fê-lo porque quis veicular através dele a sua perspectiva derrotista sobre o nosso atraso.
Mas há pior: fica-se com a sensação de que o país era incapaz de organizar um evento do género. Ou, alargando a perspectiva, de que era incapaz para o desporto. Isto não é gratuito, pois o que está em causa é justamente o desporto moderno, de massas, como já disse.
Ora isto é falso: nós tivemos recentemente o Figo, temos o Ronaldo e o Mourinho, figuras de topo do desporto em qualquer lado. E somos bem capazes de organizar uma boa corrida de cavalos.
Quando chegamos à conclusão de que o autor falhou na mesnagem que quis colar ao episódio, passamos a distanciar-nos dele, a pôr-nos numa atitude de não aceitação passiva, o que é muito desejável. Foi esta a atitude predominante do próprio Eça, que tantas coisas pôs em causa.


DUAS CARICATURAS DE EDUCAÇÃO
É conhecido o tema da educação n’Os Maias. Estão lá em paralelo as educações do Carlinhos com a do Pedro da Maia e a do Eusebiozinho. Nos dois casos são apenas caricaturas de educação.
Na do Carlinhos, falta a presença activa do carinho materno: falta uma mulher de bom senso, que aparasse as asas a Afonso da Maia e promovesse uma séria educação moral e religiosa do pequeno. Que atitudes primárias ali se vêem!
Nas do Eusebiozinho e de Pedro da Maia, falta o contributo dum pai responsável, que abrisse às crianças as portas para um mundo mais vasto.

Nem todas as mães são beatas, pois há muita mais vida para além da beatice; nem todos os pais são comodistas, passa-culpas.
A esposa de Eça, por exemplo, que era católica praticante, era uma senhora cheia de bom senso, activa, uma educadora exemplar.

A educação de Carlos é um fracasso semelhante à do Eusebiozinho e à do Pedro da Maia, pois não o dotou dum sistema de valores que o conduzisse na vida e fizesse dele um cidadão útil. Como o Ega reconhece, Carlos falhou (e o Ega também). E não falhou devido ao meio ambiente, falhou desde jovem, pois desde jovem foi um boémio, dado a amores libertinos, sem nenhum respeito pela instituição familiar, que é basilar numa sociedade.

Esta caricatura, cheia de pessimismo, coaduna-se bem com o vencidismo que se apossara de Eça, manifestado no grupo dos Vencidos da Vida, a que ele pertenceu, se é que não promoveu.
O leitor é ali colocado perante duas propostas educativas, a tradicional, aplicada ao Eusebiozinho, e a «inglesa», aplicada ao Carlinhos. Mas ambas estas crianças acabam em cidadãos falhados, pessoal e socialmente. Como todos nós tivemos antepassados nesse tempo, eles deveriam ter sido educados por um ou outro destes modelos, logo seriam uns falhados e progenitores de falhados. E esse falhanço devia chegar até nós. O que é absurdo.
Isto é, o autor d’Os Maias está muito longe de ser aquele sábio perante quem nós não temos senão que dizer que acertou. Não, o seu olhar não era claro.
E se a alguém isto parecer pouco ortodoxo, vá dar uma olhadela a A Cidade e as Serras e a A Ilustre Casa de Ramiores e lá verificará que o mesmo Eça defende pontos de vista muito opostos aos d’Os Maias.
Nem Eça, nem Camilo, nem Pessoa, nem Saramago têm a verdade toda.
Muito antes deles, houve um poeta que disse: «Rasga meus versos!» Sem chegar a tanto, todos devemos contudo manter perante a literatura uma visão serena e sempre crítica. A verdade está quase sempre ao nosso lado, o que é preciso é procurá-la.


AS LOUCAS MULHERES D’OS MAIAS

Os Maias são um romance bastante masculino. Mas agora vamo-nos pronunciar sobre a qualidade humana das mulheres que nele ocorrem.
As mulheres deste romance são filhas directas do autor: é assim em qualquer história de ficção. Com excepção da irmã de Carlos, uma vítima das loucuras maternas, são todas caricaturas, o que as reúne num lamentável quadro, certamente ofensivo se tomado como retrato do panorama feminino português do tempo.
Vejamos uma lista, ainda que incompleta: Maria Eduarda Runa (“A sua devoção – a devoção dos Runas –, sempre grande, exaltara-se…”), Maria Monforte, Tia Fanny (um apêndice de Afonso que serve para diminuir a esposa deste), Gertrudes, a viscondessa (familiar de Afonso que aparece em S. Olávia), Ana Silveira, Eugénia Silveira, a Teresinha (“uma rapariguinha feia, amarela como uma cidra”), Mãe do Ega, Hermengarda, Encarnación, a Madame Rughel, a Coronela dos Hussardos, a Raquel Cohen, a Gouvarinho, Maria Eduarda, a Mélanie, Miss Sara, a baronesa de Graben…
Podemos reuni-las em grupos. Assim, são aparentadas Maria Eduarda Runa, a viscondessa, Ana Silveira, Eugénia Silveira e a mãe do Ega. Como se trata de mulher honestas, o autor caricaturou-as como beatas incorrigíveis e de vistas tão curtas que é de duvidar se tenham existido tais seres. São manifestamente estúpidas e velhas ou avelhentadas.
Depois temos o grupo da Maria Monforte e da filha Maria Eduarda. Conhecemo-las em jovens: são descritas como possuindo ambas uma beleza que estonteia; as aparições duma e doutra em Lisboa fazem grande alarido: são de facto também uma hipérbole.
Maria Eduarda Monforte, que era rica, começa sofrivelmente, mas carrega o mal que a há-de rebaixar: a desocupação e a leitura de literatura romântica. Lembrar Madame de Bovary.
A filha parecia mais equilibrada à partida, mas é empurrada para a miséria moral e também económica pelas loucuras da mãe. Envolvida mais ou menos em inocência no incesto com Carlos, resgatar-se-á depois.
Outro grupo é o da Raquel Cohen e da Gouvarinho. Estão ambas próximas da Maria Monforte ao não terem uma actividade útil a que se apliquem e ao deixarem-se deslizar para o adultério por divertimento: a Cohen fá-lo repetidamente, a Gouvarinho persegue Carlos com sofreguidão.
Em nível economicamente inferior, mas de semelhante jaez, está a Hermengarda; também se aparenta com esta a Miss Sara.
A Encarnación e a Lola e outras são um grupo à parte, constituído por prostitutas jovens, ao serviço de homens sem escrúpulos que lhes desfrutam a juventude.
O que é confrangedor é que num conjunto feminino tão numeroso não surja uma mulher moral e socialmente aproveitável. Isto é tanto mais gritante quanto o autor tinha agora dentro das portas uma jovem esposa de ideias claras, cheia de equilíbrio, apaixonada, excelente mãe de família e devota quanto convinha.
Nas corridas de cavalos, fala-se dum grupo feminino, que é rebaixado no aspecto físico, mas a que não é atribuída tão genericamente a vilania.


A DEDICATÓRIA D’OS LUSÍADAS

Vou recuar bastante no tempo, para o séc. XVI, pois pretendo falar da Batalha de Lepanto, que teve lugar em Outubro de 1571, e d’Os Lusíadas, que foram publicados no ano seguinte. O poema deve ter atingido a versão definitiva já no final do 1571, quando D. Sebastião, que nascera em 20 de Janeiro de 1554, ainda não teria completado 17 anos. Camões dedica-lho, mas fá-lo nuns termos que me parecem imperdoavelmente exagerados.
Rei desde os três anos, rei de facto desde os 14, D. Sebastião era em 1571 um jovem com um feitio não muito adequando à alta função que lhe cabia; mas repousavam sobre os seus ombros as esperanças de um Portugal independente, já que o próximo herdeiro do trono era o monarca castelhano. Era urgente que casasse, para poder ter herdeiros.
Face a estas condicionantes, é muito de estranhar o modo como Camões lhe fala na dedicatória da epopeia e depois nas estrofes finais do poema. Vamos recordar a dedicatória.
Depois de lhe chamar “bem-nascida segurança / Da Lusitana antiga liberdade”, o que estava certo, chama-lhe logo “certíssima esperança / De aumento da pequena Cristandade”, o que já não vinha muito a propósito, dadas as limitações económicas gritantes do país e as limitações do jovem rei. Mas o pior vem depois em catadupa: chama-lhe “novo temor da maura lança” (isto é, dos reinos mouros em geral, incitando-o à guerra), chama-lhe “poderoso Rei, cujo alto Império / O Sol, logo em nascendo, vê primeiro, / Vê-o também no meio do Hemisfério, / E quando dece o deixa derradeiro” (ao modo do que se dizia do seu tio Carlos V), e sobretudo diz do moço rei que se espera dele “jugo e vitupério / Do torpe Ismaelita cavaleiro, / Do Turco Oriental e do Gentio / Que inda bebe o licor do santo Rio”. Isto é, mostra-lhe um campo de acção guerreira que vai da África do Norte ao império otomano e a toda a Índia.
Isto é de facto autêntica loucura. E a proposta é confirmada, ao menos em parte, no final do poema, quando o poeta o incita o jovem rei à guerra no Norte de África, dispondo-se a cantar-lhe nova epopeia com os feitos bélicos que aí praticasse. O Rei acabaria por ir e ficar Alcácer-Quibir, perdendo o país a independência.
É difícil de não concordar com a gravidade destas incitações irresponsáveis à actividade bélica, ainda por cima saídas da pena de quem tinha algum conhecimento do que era o campo da batalha.
Eu creio que actualmente a tendência é para reconhecer que Camões é mais genial na Lírica (sonetos, canções, éclogas, redondilhas, etc.) do que n’Os Lusíadas. De facto, a meu ver, a epopeia não responde satisfatoriamente a muitas questões que lhe podem ser dirigidas.
Disse atrás que a epopeia há-de ter ficado pronta talvez no final de 1571, mas pelo menos alguns meses antes de vir a público, pois o trabalho tipográfico na altura devia ser muito lento.
Nesses meses a cristandade católica estaria sob o efeito da grande, da extraordinária vitória obtida em Lepanto, em Outubro de 1571.
O sultão de Constantinopla prometia entrar a cavalo pela Basílica de S. Pedro, que então ainda não estaria bem terminada. A sua soberba era uma ameaça a que era urgente pôr algum cobro.
Depois de muitas negociações e dificuldades, lá se reuniu uma frota para enfrentar os turcos. A batalha decorreu junto a Lepanto, a sudeste da Grécia. Comandou a armada D. João de Áustria, um parente próximo de D. Sebastião, pois era filho, embora bastardo, do irmão da sua mãe, Carlos V. A frota turca era comandada por Ali-Pachá, que foi morto, e a vitória católica foi grandiosa. Nem é bom pensar nas consequências que uma derrota poderia ter provocado…
A minha ideia é a de que Camões terá acreditado que D. Sebastião iria gozar, nas aventuras militares, duma protecção divina semelhante à que possibilitara a decisiva vitória do seu primo D. João de Áustria. Assim, certas afirmações da dedicatória fariam muito sentido; sem isso, não vejo que sentido façam.
Sobre a batalha de Lepanto, contam-se coisas extraordinárias. Por exemplo, que Nossa Senhora teria sido vista sobre a frota turca numa atitude que não augurava nada de bom; que o Papa Pio V, em Roma, sem receber notícia nenhuma de Lepanto, por altura da vitória, teria convidado os cardeais a irem agradecer com ele a Deus o êxito católico. A essa batalha está também associado o incremento da oração mariana do terço.

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