Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?
Álvaro de Campos
A Mensagem de F. Pessoa é um livro curioso. O autor assume-se aí como uma espécie de profeta que vai desvendar o sentido da história nacional; um sentido inimaginável, oculto ao olhar comum e que aponta o futuro como algo grandioso ou pelo menos misterioso. O livro parece produto de mais um heterónimo pessoano, tal é a distância a que se situa quer da poesia comum do ortónimo quer da dos três heterónimos mais conhecidos (quanto a temática – sebastianismo, Cristianismo pouco ortodoxo – e mesmo a estilo). Os seus poemas – que assentam numa leitura gratuita e mistificadora da vida de figuras notáveis da nossa história – são de grande qualidade poética.
Esta mistificação parece estar mesmo já sugerida naqueles versos do poema Liberdade:
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não?
Verdade seja porém que em certos escritos em prosa Pessoa afirma atribuir ao seu livro sentidos de grande alcance cultural.
A primeira parte da Mensagem organiza-se a partir do Brasão nacional monárquico (clique na imagem para a aumentar).
Benedictus Dominus Deus noster qui dedit nobis signum: abre o poeta, em epígrafe. «Bendito seja o Senhor, nosso Deus, que nos deu um sinal (uma mensagem)!» E é sem dúvida a ele – que recebeu a mensagem - que cabe revelar os indícios desse sinal que Deus disseminou ao longo da história do país[1].
A chave principal de que se socorre é o sebastianismo, que vem de mistura com outras influências de carácter ocultista.
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Mais escritos “proféticos” de F. Pessoa
Há um soneto ortónimo, dos Passos da Cruz, que começa por estes versos:
Emissário de um rei desconhecido,
Eu cumpro informes instruções de além,
E as bruscas frases que aos meus lábios vêm
Soam-me a um outro e anómalo sentido…
O original neles é o poeta assumir-se aí também em pose mais ou menos profética.
Álvaro de Campos, na Tabacaria, embora em tom irónico, também escreveu:
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Se ouviu a voz de Deus e a poderia transmitir aos homens, encontra-se numa situação de profeta.
Vejam-se ainda estes parágrafos em prosa de quando colaborava na revista A Águia:
E isto leva a crer que deve estar para muito breve o inevitável aparecimento do poeta ou poetas supremos, desta corrente, e da nossa terra, porque fatalmente o Grande Poeta, que este movimento gerará, deslocará para segundo plano a figura, até agora primacial, de Camões. Quem sabe se não estará para um futuro muito próximo a ruidosa confirmação deste deduzidíssimo asserto? […]
Tenhamos fé. Tornemos essa crença, afinal, lógica, num futuro mais glorioso do que a imaginação o ousa conceber a nossa alma e o nosso corpo, o quotidiano e o eterno de nós. Dia e noite, em pensamento e acção, em sonho e vida, esteja connosco, para que nenhuma das nossas almas falte à sua missão de hoje, de criar o supra-Portugal de amanhã.
E a nossa grande raça partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas "daquilo de que os sonhos são feitos ". E o seu verdadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal antearremedo, realizar-se-á divinamente.
(publicado na revista A Águia, série II, nº 4, Porto, Abril de 1912)
E ainda mais um fragmento:
Há uma espécie de propaganda com que se pode levantar o moral de uma nação - a construção ou renovação e a difusão consequente e multímoda de um grande mito nacional. De instinto, a humanidade odeia a verdade, porque sabe, com o mesmo instinto, que não há verdade, ou que a verdade é inatingível. O mundo conduz-se por mentiras; quem quiser despertá-lo ou conduzi-lo terá que mentir-lhe delirantemente, e fá-lo-á com tanto mais êxito quanto mais mentir a si mesmo e se compenetrar da verdade da mentira que criou. Temos, felizmente, o mito sebastianista, com raízes profundas no passado e na alma portuguesa. Nosso trabalho é pois mais fácil; não temos que criar um mito, senão que renová-lo. Comecemos por nos embebedar desse sonho, por o integrar em nós, por o incarnar. Feito isso, por cada um de nós independentemente e a sós consigo, o sonho se derramará sem esforço em tudo que dissermos ou escrevermos, e a atmosfera estará criada, em que todos os outros, como nós, o respirem. Então se dará na alma da nação o fenómeno imprevisível de onde nascerão as Novas Descobertas, a Criação do Mundo Novo, o Quinto Império. Terá regressado El-Rei D. Sebastião.
Fernando Pessoa, in 'Resposta do Inquérito «Portugal, Vasto Império»'
Isto (e há mais) não passa duma mistificação (neste último caso abertamente assumida como tal), mas mostra que a pose profética não ocorre só no texto da Mensagem.
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O plano da Mensagem
A Mensagem organiza-se em três momentos, Brasão, Mar Português e Encoberto, abrindo cada um deles também com uma epígrafe em latim:
Bellum sine bello (Guerra sem guerra); Possessio maris (Posse do mar) e Pax in Excelsis (Paz nas alturas)[2].
É bem original a leitura que Pessoa faz do Brasão português: campos heráldicos, castelos, quinas, grifo, tudo ele representa como figuras históricas (reis ou outros notáveis) que em si encarnaram por um momento e com uma missão concreta esse sinal que aponta o futuro.
Mar Português, a segunda parte, é uma sucessão mais linear de temas da nossa aventura marítima, mas cabem lá também o Mostrengo (um sucedâneo do Adamastor), Horizonte, Ocidente, Mar Português, e ainda poemas mais esotéricos como Ascensão de Vasco da Gama ou a Prece final.
A revelação da Mensagem atinge o seu cume na terceira parte, O Encoberto, a que o poeta impôs uma divisão tripartida de Os Símbolos, Os Avisos e Os Tempos, tudo em função da vinda de D. Sebastião e do seu Quinto Império. A obra culmina com o poema intitulado Nevoeiro, aquele nevoeiro que antecederá a chegada do Desejado. Este momento é precedido por uma sucessão de poemas ordenados em aproximação gradativa à revelação que há-de garantir sentido a todo o livro: Noite, Tormenta, Calma, Antemanhã e, por fim, Nevoeiro.
«É hora!», avisa o vate antes de se despedir, o que faz em latim: Valete, Fratres (Adeus, Irmãos!)
Nesta imagem um dragão envolve e segura o Brasão nacional (republicano); no brasão imaginado da Mensagem, em vez do dragão, é referido um grifo, que é também um ser imaginário, com cabeça e asas de águia, e corpo de leão.
Por muito que se queira valorizar esta construção pessoana, fica-se no fim bastante desarmado e ocorrem à nossa memória os versos irónicos do poema Liberdade, que tudo dissolvem em jogo.
Tanto investimento poético para isto?
Mas foi o mesmo Fernando Pessoa que escreveu:
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Mas eu não tenho princípios. Hoje defendo uma coisa, amanhã outra. Mas não creio no que defendo hoje, nem amanhã terei fé no que defenderei.
[1] A frase de abertura Benedictus Dominus Deus noster qui dedit nobis signum parece ter origem na versão latina do Cântico de Zacarias, ou Benedictus, que se lê no Evangelho de S. Lucas, 1, 67 e ss. Aquele hino começa assim: Benedictus Dominus Deus Israel, quia visitavit et fecit redemptionem plebis suæ: “Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, porque visitou e redimiu o seu povo”.
[2] No Evangelho de S. Lucas encontra-se também a sugestão de Pax in Excelsis, no canto dos Anjos depois do anúncio aos pastores. Mas há uma inversão face ao texto de origem: lá a paz era anunciada aos homens e a glória, essa é que era dada a Deus “nas alturas”, “in Excelsis”: Gloria in excelsis Deo! Aqui deseja-se a “Paz nas alturas”.
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