Não são muito frequentes os poemas de
Fernando Pessoa que agridem frontalmente o cristianismo nem sequer os que
agridem normas elementares de moral. Mas há alguns e às vezes usam uma
violência inesperada. Tais agressões algum débito hão-de ter para com o republicanismo
do tempo, contra o qual a sua educação religiosa infantil o não conseguiu
imunizar.
Vamos tecer aqui algumas considerações
sobre este tema, limitando-nos aos poemas mais divulgados.
A blasfémia
A blasfémia de Fernando Pessoa dirige-se
principalmente contra Cristo, não tanto contra Deus como tal. Está logo no
poema Liberdade,
que deve ser um poema bastante antigo, talvez anterior aos heterónimos. Remata
assim:
Grande é a poesia, a bondade e as
danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que
peca
Só quando, em vez de criar, seca.
O mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse
biblioteca...
A observação de que Jesus “não sabia
nada de finanças” é intencionalmente blasfema, mesmo que se deva ter em conta
que Ele tinha as limitações da sua condição humana.
Pensamos que a Mensagem pretendeu
ser uma espécie de evangelho apócrifo, uma alternativa sebastianista a Cristo
redentor. O poeta assume-se como profeta a quem Deus se revelou – dedit
nobis signum –
e que anuncia um caminho novo de redenção, que, por Portugal, é também para o
mundo.
Embora ocorram no poema textos
aparentemente repassados de cristianismo aceitável, versos como estes, das
Quinas, na primeira parte, devem-nos precaver contra ingenuidades:
Foi com desgraça e com vileza
Que Deus ao Cristo definiu:
Assim o opôs à Natureza
E Filho o ungiu.
Na poesia de Alberto Caeiro, é
principalmente naquele poema VIII, sobre o Menino Jesus, que ele diz as maiores
enormidades blasfemas contra Cristo, mas também contra Deus Pai, Deus Espírito
Santo e a Virgem Maria. Até porque uma vez, por uma razão relativamente fútil,
o poeta se distanciou deste texto, optamos por não o citar.
Ricardo Reis, o discípulo de Epicuro e
seguidor de Horácio, menciona Cristo várias vezes, sempre em atitude de
bastante claro desprezo, negando-lhe o seu lugar de Filho único de Deus. Um dos
poemas começa assim:
Não a ti, Cristo, odeio ou menosprezo
Que aos outros deuses que te precederam
Na memória dos homens.
Nem mais nem menos és, mas outro deus.
No Panteão faltavas. Pois que vieste
No Panteão o teu lugar ocupar,
Mas cuida não procures
Usurpar o que aos outros é devido.
Teu vulto triste e comovido sobre
A stéril dor da humanidade antiga
Sim, nova pulcritude
Trouxe ao Panteão incerto.
Uma vez fala dos “crentes em Cristos e
Marias”, outra no “idólatra exclusivo de Cristo”. Os poemas que citamos
são de 1916.
É curioso que, no seu paganismo de raiz
greco-romana, Ricardo Reis nunca dirija uma oração aos seus deuses
recuperados.
Na poesia do moderno e às vezes
tresloucado Álvaro de Campos, que uma vez menciona uma carta de S. Paulo
(“Primeira Epístola aos Coríntios”), que tem poemas intitulados Pecado
original e Magnificat,
que usa uma vez a expressão litúrgica latina Sursum corda, não ocorrem
frequentes referências a Cristo nem blasfémias em sentido estrito. Encontram-se
na sua poesia até reflexões bastante sérias, embora negativas, sobre o tema
religioso.
A agressão blasfema atinge sobretudo
aqueles que têm fé, pois que a blasfémia pura, contra entidades sagradas por
parte de quem crê, deve ser coisa rara. Sendo assim, as blasfémias de
Fernando Pessoa, como as de Saramago, são principalmente coisa de mal-educados.
Imoralidades
Nas Páginas Íntimas e de
Auto-Interpretação, escreve Fernando Pessoa estes horrores: «Álvaro de
Campos não tem sombra de ética; é amoral, se não positivamente imoral (…) A
ideia da perda da inocência duma criança de oito anos (Ode II, ad
finem) [Ode
Triunfal] é-lhe
positivamente agradável, pois satisfaz duas sensações muito fortes – a
crueldade e a luxúria».
Leia-se
esta amostra da Ode Marítima,
onde há coisa pior:
Ah, ser tudo nos crimes! ser todos os elementos
componentes
Dos assaltos aos barcos e das chacinas e das violações!
Ser quanto foi no lugar dos saques!
Ser quanto viveu ou jazeu no local das tragédias de
sangue!
Ser o pirata-resumo de toda a pirataria no seu auge,
E a vítima-síntese, mas de carne e osso, de todos os
piratas do mundo!
Ser o meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres
Que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas pelos
piratas!
Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser deles
E sentir tudo isso - todas estas coisas duma só vez - pela
espinha!
Esta postura aberrante da Campos, que
percorre os seus poemas sensacionistas-futuristas, é paralela a outras atitudes
de semelhante teor presentes nos poemas de Alberto Caeiro e Ricardo Reis.
No poema Ontem
o pregador de verdades, o «mestre» Caeiro exprime-se
assim:
Haver injustiça é como haver morte.
Eu nunca daria um passo para alterar
Aquilo a que chamam a injustiça do
mundo.
Ricardo Reis por seu lado revela-se
ainda mais selvático. Na ode Ouvi contar que outrora, quando a
Pérsia, dois jogadores de xadrez prosseguem a sua partida, mesmo sabendo
que a destruição e a morte campeiam na sua cidade que o inimigo invadiu. E
sentencia este heterónimo epicurista:
Quando o rei de marfim está em perigo
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca,
O sangue pouco importa.
Isto é fratricida: nenhuma estética pode
sobrepor-se a uma solidariedade elementar.
Do ortónimo não conhecemos barbaridades
semelhantes.