sexta-feira, 4 de março de 2011

INTRODUÇÃO À LEITURA DA «MENSAGEM» DE FERNANDO PESSOA


Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?
Álvaro de Campos


A Mensagem de F. Pessoa é um livro curioso. O autor assume-se aí como uma espécie de profeta que vai desvendar o sentido da história nacional; um sentido inimaginável, oculto ao olhar comum e que aponta o futuro como algo grandioso ou pelo menos misterioso. O livro parece produto de mais um heterónimo pessoano, tal é a distância a que se situa quer da poesia comum do ortónimo quer da dos três heterónimos mais conhecidos (quanto a temática – sebastianismo, Cristianismo pouco ortodoxo – e mesmo a estilo). Os seus poemas – que assentam numa leitura gratuita e mistificadora da vida de figuras notáveis da nossa história – são de grande qualidade poética.
Esta mistificação parece estar mesmo já sugerida naqueles versos do poema Liberdade:

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não?

Verdade seja porém que em certos escritos em prosa Pessoa afirma atribuir ao seu livro sentidos de grande alcance cultural.

A primeira parte da Mensagem organiza-se a partir do Brasão nacional monárquico (clique na imagem para a aumentar).
Benedictus Dominus Deus noster qui dedit nobis signum: abre o poeta, em epígrafe. «Bendito seja o Senhor, nosso Deus, que nos deu um sinal (uma mensagem)!» E é sem dúvida a ele – que recebeu a mensagem - que cabe revelar os indícios desse sinal que Deus disseminou ao longo da história do país[1].
A chave principal de que se socorre é o sebastianismo, que vem de mistura com outras influências de carácter ocultista.
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Mais escritos “proféticos” de F. Pessoa

Há um soneto ortónimo, dos Passos da Cruz, que começa por estes versos:

Emissário de um rei desconhecido,
Eu cumpro informes instruções de além,
E as bruscas frases que aos meus lábios vêm
Soam-me a um outro e anómalo sentido…

O original neles é o poeta assumir-se aí também em pose mais ou menos profética.
Álvaro de Campos, na Tabacaria, embora em tom irónico, também escreveu:

Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada
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Se ouviu a voz de Deus e a poderia transmitir aos homens, encontra-se numa situação de profeta.
Vejam-se ainda estes parágrafos em prosa de quando colaborava na revista A Águia:

E isto leva a crer que deve estar para muito breve o inevitável aparecimento do poeta ou poetas supremos, desta corrente, e da nossa terra, porque fatalmente o Grande Poeta, que este movimento gerará, deslocará para segundo plano a figura, até agora primacial, de Camões. Quem sabe se não estará para um futuro muito próximo a ruidosa confirmação deste deduzidíssimo asserto? […]
Tenhamos fé. Tornemos essa crença, afinal, lógica, num futuro mais glorioso do que a imaginação o ousa conceber a nossa alma e o nosso corpo, o quotidiano e o eterno de nós. Dia e noite, em pensamento e acção, em sonho e vida, esteja connosco, para que nenhuma das nossas almas falte à sua missão de hoje, de criar o supra-Portugal de amanhã.
E a nossa grande raça partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas "daquilo de que os sonhos são feitos ". E o seu verdadeiro e supremo destino, de que a obra dos nave­gadores foi o obscuro e carnal antearremedo, realizar-se-á divinamente.

                   (publicado na revista A Águia, série II, nº 4, Porto, Abril de 1912)

E ainda mais um fragmento:

Há uma espécie de propaganda com que se pode levantar o moral de uma nação - a construção ou renovação e a difusão consequente e multímoda de um grande mito nacional. De instinto, a humanidade odeia a verdade, porque sabe, com o mesmo instinto, que não há verdade, ou que a verdade é inatingível. O mundo conduz-se por mentiras; quem quiser despertá-lo ou conduzi-lo terá que mentir-lhe delirantemente, e fá-lo-á com tanto mais êxito quanto mais mentir a si mesmo e se compenetrar da verdade da mentira que criou. Temos, felizmente, o mito sebastianista, com raízes profundas no passado e na alma portuguesa. Nosso trabalho é pois mais fácil; não temos que criar um mito, senão que renová-lo. Comecemos por nos embebedar desse sonho, por o integrar em nós, por o incarnar. Feito isso, por cada um de nós independentemente e a sós consigo, o sonho se derramará sem esforço em tudo que dissermos ou escrevermos, e a atmosfera estará criada, em que todos os outros, como nós, o respirem. Então se dará na alma da nação o fenómeno imprevisível de onde nascerão as Novas Descobertas, a Criação do Mundo Novo, o Quinto Império. Terá regressado El-Rei D. Sebastião.

Fernando Pessoa, in 'Resposta do Inquérito «Portugal, Vasto Império»'

Isto (e há mais) não passa duma mistificação (neste último caso abertamente assumida como tal), mas mostra que a pose profética não ocorre só no texto da Mensagem.
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O plano da Mensagem

A Mensagem organiza-se em três momentos, Brasão, Mar Português e Encoberto, abrindo cada um deles também com uma epígrafe em latim:
Bellum sine bello (Guerra sem guerra); Possessio maris (Posse do mar) e Pax in Excelsis (Paz nas alturas)[2].
É bem original a leitura que Pessoa faz do Brasão português: campos heráldicos, castelos, quinas, grifo, tudo ele representa como figuras históricas (reis ou outros notáveis) que em si encarnaram por um momento e com uma missão concreta esse sinal que aponta o futuro.
Mar Português, a segunda parte, é uma sucessão mais linear de temas da nossa aventura marítima, mas cabem lá também o Mostrengo (um sucedâneo do Adamastor), Horizonte, Ocidente, Mar Português, e ainda poemas mais esotéricos como Ascensão de Vasco da Gama ou a Prece final.
A revelação da Mensagem atinge o seu cume na terceira parte, O Encoberto, a que o poeta impôs uma divisão tripartida de Os Símbolos, Os Avisos e Os Tempos, tudo em função da vinda de D. Sebastião e do seu Quinto Império. A obra culmina com o poema intitulado Nevoeiro, aquele nevoeiro que antecederá a chegada do Desejado. Este momento é precedido por uma sucessão de poemas ordenados em aproximação gradativa à revelação que há-de garantir sentido a todo o livro: Noite, Tormenta, Calma, Antemanhã e, por fim, Nevoeiro.
«É hora!», avisa o vate antes de se despedir, o que faz em latim: Valete, Fratres (Adeus, Irmãos!)

Nesta imagem um dragão envolve e segura o Brasão nacional (republicano); no brasão imaginado da Mensagem, em vez do dragão, é referido um grifo, que é também um ser imaginário, com cabeça e asas de águia, e corpo de leão.
Por muito que se queira valorizar esta construção pessoana, fica-se no fim bastante desarmado e ocorrem à nossa memória os versos irónicos do poema Liberdade, que tudo dissolvem em jogo.
Tanto investimento poético para isto?
Mas foi o mesmo Fernando Pessoa que escreveu:
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Mas eu não tenho princípios. Hoje defendo uma coisa, amanhã outra. Mas não creio no que defendo hoje, nem amanhã terei fé no que defenderei.

[1] A frase de abertura Benedictus Dominus Deus noster qui dedit nobis signum parece ter origem na versão latina do Cântico de Zacarias, ou Benedictus, que se lê no Evangelho de S. Lucas, 1, 67 e ss. Aquele hino começa assim: Benedictus Dominus Deus Israel, quia visitavit et fecit redemptionem plebis suæ: “Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, porque visitou e redimiu o seu povo”.
[2] No Evangelho de S. Lucas encontra-se também a sugestão de Pax in Excelsis, no canto dos Anjos depois do anúncio aos pastores. Mas há uma inversão face ao texto de origem: lá a paz era anunciada aos homens e a glória, essa é que era dada a Deus “nas alturas”, “in Excelsis”: Gloria in excelsis Deo! Aqui deseja-se a “Paz nas alturas”.

Felizmente Há Luar! - uma farsa


Felizmente há Luar! de Luís de Sttau Monteiro é uma obra de leitura obrigatória para todos ou quase todos os alunos que actualmente fazem o 12º ano. O seu protagonista é o general Gomes Freire de Andrade, que acaba enforcado no forte de Oeiras, em S. Julião da Barra.
O autor quer fazer dele um herói, mas a verdade histórica autoriza muito mal tal pretensão.
Na vida de militar de Gomes Freire de Andrade podemos distinguir dois períodos, aquele em que serviu o exército português e aquele em que foi mercenário ao serviço de Catarina da Rússia e depois de Napoleão.
Segundo uma biografia da responsabilidade do Exército Português que se encontra na Internet, este oficial não se sai muito bem no primeiro período, pois atacava “todos os que não eram aristocratas como ele” e “também os comandantes da artilharia, Rosa e Teixeira Rebelo, estes, antigos sargentos, vindos do pequeno campesinato do interior do país, que tinham conseguido ascender ao oficialato devido aos seus estudos e à sua competência técnica”. Esta é uma atitude que noutros tempos se não hesitaria em qualificar de reaccionária: ele valorizava pergaminhos e interesses de classe, não o mérito. Andava às avessas da Revolução Francesa que estava para estalar e do liberalismo que aí vinha.
Mais adiante, escreve-se na mesma biografia:
“Subindo os postos tão rapidamente quanto possível a um oficial aristocrata, mas não o suficiente para seu gosto, tentou todos os meios para subir rapidamente na hierarquia transferindo-se para a Marinha de Guerra, tendo aproveitado a guerra da Rússia contra o Império Otomano, e a assinatura do tratado de Amizade e Aliança entre Portugal e a Rússia, para se propor voluntário para o exército russo, na guerra empreendida pela imperatriz Catarina e dirigida pelo célebre general Potemkine, conflito que terminará com a conquista da Crimeia pela Rússia”.
Temo-lo assim como mercenário ao serviço duma rainha de crueldade proverbial.
Aquando da primeira invasão francesa, em 1807, pôs-se do lado dos invasores. Voltemos à mesma biografia:
“A colaboração com os ocupantes espanhóis e franceses fê-lo ser nomeado para 2.º comandante do exército português, reformado de acordo com os regulamentos franceses, que se dirigiu em Abril de 1808 para França, onde foi integrado no exército francês com o título de Légion Portugaise.
Em Espanha, teve tempo de combater a insurreição espanhola contra os invasores franceses, sendo enviado com algumas tropas portuguesas para o cerco de Saragoça. Regressou a França com as tropas portuguesas do seu comando, dirigindo-se para Grenoble, guarnição da Legião em França”.
Mais adiante foi nomeado governador de Dresden, na Alemanha, por Napoleão Bonaparte.
Tudo isto faz dele um vil mercenário, um oportunista que não olha a meios, um traidor da sua pátria.
Com a definitiva derrota de Napoleão, Gomes Freire de Andrade consegue voltar a Portugal e escapar a um merecido julgamento.
Luís de Sttau Monteiro aproveita-o em 1817, branqueando-lhe o passado e fazendo dele um mártir dos inimigos do liberalismo que se anunciava. É curioso, e também conveniente, que mantenha Gomes Freira de Andrade sempre ausente da cena e que portanto o espectador nunca lhe ouça uma palavra. Podia-se comprometer.
A Igreja sai muito mal parada desta obra, onde surgem posições de cariz protestante e contestatário, nalguns casos ao menos creio que ao modo dos chamados católicos progressistas que se opuseram a Salazar, o que parece um pouco anacrónico.
No final da peça, a juventude escolar que hoje tem de ler o livro fica com uma ideia muito negativa da Igreja e de Salazar, que são os dois alvos do autor, e com uma ideia muito positiva sobre o liberalismo. Isto é, a nosso ver, falseador da verdade, pois branqueia-se um homem que tinha um passado nada recomendável e torna-se mais grave quando logo a seguir o aluno vai passar para o Memorial do Convento, onde a paixão se sobrepõe também à procura serena da verdade: nunca nele, por exemplo, se valoriza a extraordinária arte do Convento de Mafra.
A Igreja foi seriamente vítima da sanha jacobina do liberalismo, mas isso não está nesse livro nem noutros semelhantes.

Imagens a partir de cima:
Gomes Freire de Andrade
Catarina da Rússia
Napoleão Bonaparte