Novela histórica e romântica
Novela
A ficção narrativa tem três géneros principais: o conto,
a novela e o romance. Hoje, os teóricos pretendem distinguir com rigor cada um
deles.
Num dos prefácios do livro, em frases próximas, Camilo chama
a esta história sucessivamente romance e novela. Por outro lado, ainda hoje uma
ficcionista como Agustina Bessa-Luís diz que um conto é mais curto e que um
romance é mais longo, sem se importar de outras subtilezas teóricas.
“Não é por acaso que a expressão «novela camiliana» é frequentemente
usada em vez de «romance camiliano»: a palavra italiana novela tinha já uma tradição na Espanha (entenda-se Península) quando o romance
anglo-francês foi introduzido em Portugal. A diferença entre um e outro é que
na novela a acção é uma sucessão de acontecimentos
independente da dimensão tempo, que tem grande importância no romance de
Dickens ou de Balzac”. António José Saraiva
A novela dá-nos mais o acontecido, portanto isolando a
acção do contexto, e o romance dá-nos mais o acontecer, inserindo-o numa teia
mais alargada de informação de ordem psicológica e social.
Histórica
No início e mesmo nalguns passos da narrativa, Camilo
insinua que está a fazer uma crónica de factos acontecidos, históricos. Tal só
é em parte verdade. Uma personagem tão importante como Teresa não entrava na
biografia do tio do autor; muito menos Mariana.
Romantismo
Esta novela é romântica por excelência, pois conta a luta
do indivíduo contra a pressão do meio (David contra Golias); mas é uma luta em
que o David aceita a morte numa perspectiva algo cristã e por isso não
inteiramente absurda. Lembre-se a piedade de Teresa e as afirmações de Simão
quando afirma que ela lhe devolvera a fé ou quando diz que apelará para Jesus
Cristo.
Teresa, que acabará por morrer de amor, chega a pedir ao
pai que a mate, mas que a não obrigue a casar com o primo Baltazar.
Simão, depois de matar em defesa dos direitos do seu
coração e do da Teresa, entrega-se à justiça, numa atitude de honestidade e
coragem, contrária a toda a prática então comum, que era a de fugir dela e de a
torpedear; acaba também vítima do amor.
É uma luta desigual, titânica, que o jovem casal de
apaixonados, armado da sua razão e da sua determinação, empreende contra a
tirania da geração anterior, empedernida em ódios velhos, agarrada a
preconceitos nobiliárquicos (ambos os pais recusam o amor entre os filhos respectivos
por estas razões) e, no caso de Tadeu de Albuquerque, pretendendo atribuir ao
dinheiro um lugar inconciliável com o respeito pelos direitos da geração jovem
a decidir livre e responsavelmente o seu futuro.
O cerne da intriga é uma luta de morte em defesa dos
direitos do coração contra as prepotências do ódio, do dinheiro, das presunções
nobiliárquicas[1].
Estilo
As observações de Camilo nos prefácios da segunda e
quinta edições:
Segunda (de 1863, a primeira esgotou rapidamente):
Este
livro, cujo êxito se me antolhava mau, quando eu o ia escrevendo, teve uma
recepção de primazia sobre todos os seus irmãos. Movia-me à desconfiança o ser
ele triste, sem interpolação de risos, sombrio, e rematado por catástrofe
de confranger o ânimo dos leitores, que se interessam na boa sorte de uns e no
castigo de outros personagens. Em honra e louvor das pessoas que estimaram o
meu livro, confessarei agradavelmente que julguei mal delas. Não aprovo a
qualificação; mas a crítica escrita conformou-se com a opinião da maioria, que
antepõe o Amor
de Perdição ao Romance de um Homem Rico e às Estrelas Propícias.
É grande
parte neste favorável, embora insustentável, juízo, a rapidez das
peripécias, a derivação concisa do diálogo para os pontos essenciais do enredo,
ausência de divagações filosóficas, a lhaneza da linguagem e desartifício das
locuções. Isto, enquanto a mim, não pode ser um merecimento absoluto. O
romance que não se estribar em outras recomendações mais sólidas deve ter uma
voga muito pouco duradoura.
E da quinta edição (1878):
O Amor de Perdição, visto à luz eléctrica do criticismo moderno,
é um romance romântico, declamatório, com bastantes aleijões líricos e umas
ideias celeradas que chegam a tocar no desaforo do sentimentalismo. Eu não
cessarei de dizer mal desta novela, que tem a boçal inocência de não devassar alcovas a
fim de que as senhoras a possam ler nas salas, em presença de suas filhas ou de
suas mães, e não precisem de esconder-se com o livro no seu quarto de banho.
Dizem, porém, que Amor de Perdição fez chorar. Mau foi isso. Mas, agora, como
indemnização, faz rir: tornou-se cómico pela seriedade antiga, pelo raposinho que lhe deixou o
ranço das velhas histórias do Trancoso e do padre Teodoro de Almeida.
E por
isso mesmo se reimprime. O bom senso público relê isto, compara com aquilo, e
vinga-se barrufando com frouxos de riso realista as páginas que há dez anos
aljofarava com lágrimas românticas.
A crítica ao Realismo como escola
no prefácio da quinta edição:
Faz-me
tristeza pensar que eu floresci nesta futilidade da novela, quando as dores da
alma podiam ser descritas sem grande desaire da gramática e da decência. Usava-se então a retórica de
preferência ao calão. O escritor antepunha a frequência de Quintiliano à do Colete-encarnado. A gente imaginava que os alcouces não abriam
gabinetes de leitura e artes correlativas. Ai! quem me dera ter antes
desabrochado hoje com os punhos arregaçados para espremer o pus de muitas
escrófulas à face do leitor! Naquele tempo, enflorava-se a pústula; agora, a
carne com vareja pendura-se na escápula e vende-se bem, porque muita gente não
desgosta de se narcisar num espelho fiel.
Pois que
estou a dobrar o cabo tormentório da morte, já não verei onde vai desaguar este
enxurro que rola no bojo a Ideia Novíssima. Como a honestidade é a alma da
vida civil, e o decoro é o nó dos liames que atam a sociedade, lembra-me se
vergonha e sociedade ruirão ao mesmo tempo por efeito de uma grande
evolução-rigolboche. A lógica diz isto; mas a Providência, que usa mais da
metafísica que da lógica, provavelmente fará outra coisa. Se, por virtude da
metempsicose, eu reaparecer na sociedade elo século XX, talvez me regozije de
ver outra vez as lágrimas em moda nos braços da retórica, e esta 5.ª edição do Amor de Perdição quase esgotada.
Realismo do Amor de Perdição
Uma das características desta novela é o realismo da
narrativa. As descrições, os episódios possuem uma grande naturalidade, sem
mantos de poesia fácil e desnecessária ou exageros gratuitos, sem hipérboles.
Trata-se de um realismo descritivo que tem pouco a ver com o que, anos adiante,
Eça defenderá (o Realismo como escola, que Camilo ironizou) com o mesmo nome e
que tem uma base ideológica que de modo nenhum aqui se encontra.
Veja no Manual, a pág. 98, os elementos românticos e
realistas.
Epistolografia:
Teresa
Teresa, cuja instrução era rudimentar, exprime-se com
muita clareza, num fraseado geralmente curto e sem voos de grande poesia. É uma
pessoa que pensa com clareza, realismo e um bom senso inesperado na sua idade.
As cartas manifestam a sua determinação serena, mas
inabalável, de sacrificar tudo (até a vida) ao amor que definitivamente a une a
Simão.
Simão
A sua linguagem é mais romântica, no sentido de recorrer
com frequência a imagens e hipérboles, que lhe dão um tom frequentemente lírico,
declamatório, patético.
As cartas revelam-no como uma pessoa que decidiu apostar
tudo na sua paixão de jovem e revelam também o seu sonho de uma vida partilhada
com Teresa. Contra esse, não admite entraves e para os vencer joga
determinadamente a vida, na convicção de age com uma elevação moral
indiscutível (mesmo se isso implica matar). As cartas revelam ainda os seus
acessos de fúria.
A elevação moral das motivações dos protagonistas esbarra
contra as prepotências rasteiras, “contra a falsa virtude de homens feitos
bárbaros em nome da sua honra” - romantismo.
Veja, no Manual, pág. 96, a prosa poética das cartas.
Espaço
Veja no Manual, pág. 99, o que aí se escreve sobre o espaço.
Tempo
Tempo cronológico: primeiros anos do séc. XIX (os
antecedentes da intriga vêm ainda de finais do anterior). Antigo regime
(absolutista).
Camilo escreveu a obra em 1861, a poucos anos da Questão
Coimbrã e a dezena e meia de anos do início do Realismo em Portugal.
Notar que há períodos da intriga que são apenas alvo de
resumo: os meses que Simão passou em Coimbra, após se enamorar de Teresa e
antes de se desencadear a violência de Tadeu de Albuquerque sobre a filha, e o
tempo da prisão do mesmo Simão, quer em Viseu quer na Cadeia da Relação, antes
de partir para o degredo. Inversamente, o período que vai da festa de anos de
Teresa até à morte de Baltazar e os momentos que precedem e seguem a partida
para o degredo dão ocasião a compacta narração. São os momentos mais altos da
intriga, os mais reveladores da tragédia.
A estrutura da
obra
Vejam-se no Manual, a págs. 89 e 90, as características
dramática e trágica.
Traduções
Doomed Love (Inglês, 2000), Das Verhängnis der Liebe (Alemão, 1988) Fortapt Kjaerlighet en Families Memoarer (Norueguês, 1999). Também
está traduzido ao menos para japonês.
Adaptações cinematográficas e
televisivas
O livro foi três vezes
adaptado ao cinema, incluindo a versão muda de 1921,
e duas sonoras, a monumental de António Lopes Ribeiro em 1943
e a versão de Manoel de Oliveira em 1979.
Em 1965,
a TV Cultura apresentou a sua versão do romance, em forma de telenovela, também
chamada de Amor de Perdição.
Veja no Manual, a pág. 99, sobre o êxito do Amor de Perdição.
Juntamente com as novelas Livro negro do Padre Dinis e Mistérios de Lisboa é a base da
telenovela luso-brasileira Paixões Proibidas.
[1] Repare-se que na novela ocorrem muitas mortes
(Teresa, Simão, Baltazar Coutinho, João da Cruz e Mariana), o que também deve
ser fruto de certo radicalismo romântico.
No capítulo XII, quando Simão é condenado à forca,
encontram-se umas curiosas reflexões sobre esta forma de morte legal, frequente
noutros tempos: atribui-se-lhe um sentido pedagógico (?!), é uma “festa do
povo” e, naquele caso, manda-se que a execução tenha lugar no local do crime.
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