Contexto
A Farsa parece documentar a seu modo uma grande transformação social que se estava a operar no país e a que o Cancioneiro Geral também alude. Inês rejeita o viver tradicional, como aliás Brás da Mata. Ambos querem alçar-se acima do nível social e cultural em que nasceram.
A vida da corte intensificara-se e do facto nascera o Cancioneiro Geral. A riqueza afluíra ao país com uma abundância nunca vista. Levantaram-se grandes obras, como a Torre de Belém, os Jerónimos, o Palácio da Ribeira, o Palácio de D. Manuel (Palácio Real de S. Francisco), em Évora (onde foram representadas várias obras de Gil Vicente), começaram-se os Paços dos Duques de Bragança, em Vila Viçosa, ou deu-se novo fôlego a outras, como as da Batalha ou de Tomar. É o tempo do Manuelino e da Renascença, da expansão para o Oriente e para o Brasil. De 1514 é a célebre embaixada de Tristão da Cunha ao Papa...
As camadas populares deixam-se contagiar pela euforia.
Na Farsa há alusão a vários membros da corte ou seus frequentadores: o próprio rei, que tinha 21 anos, era solteiro e iria casar dentro de dois (como acontecerá também à sua irmã Isabel - Isabel de Portugal – que casará com o primo Carlos V); o Cardeal – Infante Cardeal D. Afonso - irmão do rei, com apenas 14 (?!?!) anos, feito nesse ano arcebispo de Lisboa (cfr. Enciclopédia Verbo, vol. 1, pág. 543); Vasco de Fróis, um mulherengo caquéctico; o músico Badajoz, Vilha Castim, o «Marichal» (D. Álvaro Coutinho)...
Um espectador quase certo da primeira representação da peça terá sido João de Castilho, o mais aplicado arquitecto de Tomar, e depois do Mosteiro dos Jerónimos. Há portanto, suposta, uma interacção entre o palco e a plateia.
(Não esquecer que estamos no tempo do início da Reforma protestante, que, em breve, a Inquisição, a Companhia de Jesus e o Concílio de Trento, iniciado em 1545, vão pôr ordem no mundo católico. Lembre-se também que no ano anterior o português Fernão de Magalhães fez a viagem de circum-navegação ao Planeta...)
De Inês diz-se que sabe «latim e gramateca», o que mostra a valorização social atribuída ao estudo desta língua e a incita a promover-se ao meio cortesão (também o Vilha Castim responde em latim aos judeus casamenteiros e, no final da peça, o ermitão repete várias vezes o nome do deus latino Cupido...) Mas é sobretudo a questão das boas maneiras que melhor assinala o ascendente que a vida da corte exercia sobre as camadas populares.
Acção, espaço, tempo
Gil Vicente era certamente para os seus contemporâneos um fenómeno surpreendente. Emerge quase do nada como criador dramático. Do nada da tradição dramática e do pouquíssimo da tradição literária. Daí certamente o desafio que alguns puseram à sua capacidade criativa. Mas se a Farsa é a história mais bem contada de Gil Vicente, segundo os críticos, ainda deixa a desejar em termos de unidade.
A unidade pode-se considerar sob três aspectos: de acção, de espaço e de tempo. A unidade de acção vem-lhe da presença constante da Inês e das suas iniciativas.
A história contada no palco tem uma assinalável diversidade de cenas bem marcantes, isto é, que, isoladas do contexto da obra, funcionariam como entremezes, sketches. Estão neste número a narrativa da hipotética tentativa de violação com que Lianor Vaz quer preparar Inês e sua Mãe para aceitarem a sua proposta, a entrevista de Pêro Marques com as mesmas, a cena dos judeus casamenteiros, a da aparatosa auto-apresentação de Brás da Mata, a do casamento deste com Inês, a cena final (Gil Vicente termina geralmente em grande).
Unidade de tempo não é muito respeitada, já que quando Brás da Mata vai para Arzila decorre largo período de tempo e depois, da sua morte até ao final, novamente se imagina qualquer coisa como uma semana, ao menos.
Em termos de espaço, há o interior e o exterior da casa, o terreiro onde se faz a festa de casamento, e o rio que o par atravessa na cena final.
Além do espaço físico, podem-se considerar os espaços social e psicológico.
No âmbito do espaço social, paga a pena fazer uma breve reflexão sobre os clérigos. A Farsa deixa-os mal vistos. No princípio, só o facto de se admitir como hipótese plausível a tentativa de violação de que se diz vítima Lianor, já não lhes é nada favorável. Mas é no fim que isso se toma mais gritante, quando o libidinoso ermitão (não pertence a qualquer ordem religiosa) se vale da sua qualidade para conseguir caminho livre nos seus amores ilícitos com Inês. O seu palavreado, misturando religião e amores, é ascoroso (refere várias vezes o nome de Cupido... ) Sem dúvida, documenta-se aqui uma real devassidão da classe. Recorde o Frade do Auto da Barca do Inferno.
Personagens
Inês
A Farsa de Inês Pereira, como Quem tem Fare!os? e o Auto da Índia, é dominada por uma personagem feminina, a jovem Inês. «Fantesiosa», de quem a mãe diz que «sabe latim, gramateca e alfaqui», domina-a a ideia de casar, mas de casar a seu original gosto. De nada valem os conselhos sensatos e um pouco prosaicos que recebe, porque ela exige do seu noivo predicados muito concretos: que seja discreto, isto é, que tenha boas maneiras e que fale bem; que seja divertido, cantador e tocador de viola; «feito em farinha», isto é, dado a ternuras, carinhoso. No fundo, um escudeiro que possa ascender a cortesão.
Inês aceita pagar elevada factura para isso: não lhe importa riqueza, pois a ideia de viver com poucos meios não a aflige, nem sequer exige especiais predicados físicos; por isso, rejeita o campónio rico e de bons costumes, mas bronco, que a alcoviteira Lianor Vaz lhe envia como pretendente e encanta-se com o matreiro Brás da Mata, escudeiro pelintra, mas conversador cortês, que, logo após a boda, a vai fechar em casa como em prisão.
Inês é um tipo de lutadora especial: sonhadora, pouco prática, em ruptura com princípios básicos acolhidos pela moralidade envolvente, não aceita barreiras e muito menos reconhece a derrota; cega-se com ela. Termina pessimamente: vencida no seu ideal, fracassado o seu sonho, toma-se adúltera, devassa.
Em termos de evolução psicológica, não se sente bem a necessidade de a fazer descer tão baixo. A Brás da Mata cabe grande parte no seu fracasso.
Vejam-se algumas das expressões com que expõe o seu ponto de vista sobre o noivo que deseja: vv. 394 e ss, 631 e ss.
Veja-se agora como o seu fracassado casamento lhe altera radicalmente as exigências: vv 860 e ss, 992 e ss.
E vai ainda mais além: vv 1006 e ss.
A Mãe
A mãe mantém uma grande dignidade em todas as suas intervenções: são sempre sensatas as suas observações e conselhos; por fim, afasta-se, para deixar livre o caminho que a filha quis seguir.
Pêro Marques, Brás da Mata e Lianor Vaz
Os retratos de Inês, de Pêro Marques e de Brás da Mata hiperbolizam todos a realidade. Pacóvio como é, Pêro Marques deixa-se manobrar quer pela Lianor Vaz quer pela esposa. Aproxima-se do parvo, no sentido que a palavra adquire na obra de Gil Vicente. A sua honestidade toma-se miopia no momento de assumir o seu papel de marido.
Brás da Mata é um refalsado aldrabão. Actua de má-fé e é cruel. A ele se deve assacar grande parte da culpa pelo desastre de Inês, já que ela vai para o casamento cheia de esperança e bem-intencionada. O seu palavreado cortês foi a nuvem de fumos com que lhe escondeu o seu projecto de marido retrógrado e despótico.
Veja-se como fala para a sua jovem esposa:
A alcoviteira Lianor Vaz não atinge aqui o aspecto mais odioso da sua congénere do Auto da Barca do Inferno.
Ermitão
O ermitão ou eremita parece parente próximo do clérigo que atacou Lianor Vaz: tem a mesma cultura religiosa, a mesma devassidão e jeito blasfemo. Ao contrário dele, fala espanhol. Como eremita, não pertencia a qualquer ordem religiosa. A Inês trata-o por padre.
A pluralidade de rostos
Em Brás da Mata descobrimos pelo menos três rostos diferentes: o da sua apresentação à Inês, como galante, tocador de viola, cantor; o que dele mostram o Moço o os Judeus; o de marido despótico. E podíamos acrescentar o de guerreiro inepto…
A Inês tem dois rostos: o inicial, até Brás da Mata a encerrar em casa, e o outro, de mulher traída no seu sonho e que se vinga, atraiçoando o segundo marido.
O Ermitão: tem também duas faces: uma, de padre, culto e poético, e outra, para os amores, de devasso.
A linguagem
Em termos de tipologia textual, observe-se que encaixam neste texto dramático uma narrativa como a de Lianor Vaz e o rimance cantado por Brás da Mata Mal me quieren en Castilla, outros vários textos poéticos cantados, fragmentos particularmente poéticos como quando Brás da Mata se apresenta à Inês e quando se lhe dirige o ermitão e as duas cartas.
Quanto a níveis de língua, temos a fala mais arcaica e aldeã de Pêro Marques, a original fala dos Judeus, os momentos mais pretensioso de Brás da Mata, etc. Atenção à justeza da oralidade, que atesta a invulgar capacidade dramática de Gil Vicente para pôr em palco cenas tiradas do real da vida.
A Farsa é bilingue, como bilingue era a corte; isso está presente em várias cantigas, no rimance Mal me quieren en Castilla e na língua usada pelo Ermitão.
Esta obra começa com canto e acaba com canto, o que equivale a dizer que começa com poesia e acaba com poesia. Mas não falta também pelo meio. Pena é que sejam apenas pequenas amostras de textos que aparentam grande qualidade.
Destacam-se o belíssimo e «profético» texto cantado na boda Mal herida va la garça e o poema sarcástico final, Marido, cuco me levades, onde reaparece o paralelismo das cantigas de amigo.
Na parte inicial da farsa, mais popular, citam-se provérbios com frequência. Eis alguns:
Mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube.
Maior é o ano que o mês.
Ante a Páscoa vêm os Ramos.
Amiga e bom amigo mais aquenta que o bom lenho.
Ou seja sapo ou sapinho, ou marido ou maridinho, tenha o que houver mister.
Mais quero eu quem me adore que quem faça com que chore.
Em Chão de Couce, quem não souber andar choute.
O pão que não haveis de comer, leixai-o a outrem mexer.
Quem bem tem e mal escolhe por mal que lhe venha não se anoje.
Sobre quantos mestres são a experiência dá lição.
Aliás, o carácter etnográfico da obra é bastante claro, pelo recurso a vários aspectos da tradição cultural popular, nomeadamente aos provérbios agora referidos, ao rimance, à festa popular do casamento, ao paralelismo poético antigo...
As diversas linguagens
Inês no princípio
Nos primeiros 40 versos, depois do canto inicial, no monólogo da Inês temos uma explosão de fúria. A sua linguagem é violenta: “Renego deste lavrar”, “Ó Jesu, que enfadamento / e que raiva, e que tormento / que cegueira, e que canseira!” Depois começa a usar imagens que exprimem a mesma fúria: “Coitada, assi hei-de estar / encerrada nesta casa/ como panela sem asa / que sempre está num lugar?” “E assi hei-de estar cativa / em poder de desfiados?” E continuam as interrogações retóricas e as imprecações. No final, aparecem as imagens mais expressivas: “Esta vida é mais que morta” (paradoxo); “São eu corujo ou coruja / ou são algum caramujo / que não sai senão à porta?”; “E quando me dão algum dia / licença como a bugia / que possa estar à janela / é já mais que a Madanela / quando achou o aleluía!”
Pêro Marques
Pêro Marques é um campónio, de fundo são, mas ignorante e ingénuo. Quando chega a casa de Inês, mais que pelas palavras é pela actuação que mostra a sua rudeza (casos da cadeira, do pente, das peias…). Quando casa com Inês, não sabe a fórmula do acto. Palavras como pentem, chentadas, escarnefucham, empacho, pardelhas ou bô deviam indiciar a sua origem aldeã, vilã.
Lianor Vaz
A linguagem de Lianor Vaz é muito vivaz e variada, às vezes popular (“cadarrão e peitogueira / cócegas e cor de rir”), às vezes suave; na sua narração, recorre ao discurso directo, evoca o Rei, o Cardeal e Vasco de Fróis…
Judeus
O caso dos Judeus também é curioso. Atrapalham-se um ao outro, ao modo dos palhaços, usam palavras como caganeira, expressões e formas vocabulares que os deveriam conotar como judeus: Nome del Deu, Rabi Zarão, dixeste, oivo, oivi, oivireis; recorrem ao exagero (hipérbole) para justificar a recompensa que vão pedir: “Pola lama e polo pó, / que era pêra haver dó, / com chuva, sol e nordeste”. Mas é sobretudo após o casamento, naquela paródia de bênção, que se manifestará mais o seu judaísmo: “Alça manim, ó dona, ha! / Arreia espeçulá. / Bento o Deu de Jacob, / Bento o Deu que a faraó / espantou e espantará”, etc.
Escudeiro
O Escudeiro deveria estar nos antípodas do Pêro Marques, e está. Tem uma entrada muito poética (“Deus vos salve, fresca rosa”), seguida por um extenso elogio a Inês, que a cativa. Apresenta-se com falsa humildade: “Eu não tenho mais de meu, / somente ser comprador / do Marichal, meu senhor/ e são escudeiro seu”. Se isto fosse verdade, ele teria com certeza uma situação social invejável. Pela positiva, diz que “Sabe bem ler / e muito bem escrever, / e bom jogador de bola”, etc. O autor altera um pouco a estrofe no momento da sua entrada em cena (um verso mais curto), para evidenciar o carácter poético do seu falar.
Ermitão
Nas falas castelhanas do Ermitão, Gil Vicente intercala o mesmo verso curto que já tínhamos encontrado nas do Escudeiro e que parece significar que se trata de trechos mais claramente poéticos. Esta personagem é eloquente e revela uma cultura literária muito superior mesmo à de Brás da Mata: fala de Cupido, ventura e fortuna, como um clérigo ou cortesão já instruído em coisas de cultura clássica. Apresenta-se como “ermitaño de Cupido”, isto é, um falso e devasso eremita. Mistura constante e blasfemamente a linguagem da fé (“ermitaño en pobre ermita, / fabricada de infinita / tristeza en que contemplo, / adonde rezo mis horas / y mis días e mis años, / mis servicios e mis daños, / donde tu, mi alma, lloras / el fin de tantos engaños”) com a da sua devassidão (“Ó señores, / los que bien os va d’amores, / dad limosna al sin holgura, / que habita en sierra oscura, / uno de los amadores / que tuvo menos ventura”).
O Romance Mal me quieren en Castilla ou Las quejas de doña Lambra
Este romance ou rimance é parte dum longo texto castelhano muito antigo, de carácter épico. Assim isolado, perde-se-lhe o sentido original, já que lá D. Lambra era uma personagem má da história e aqui é simples vítima de prepotências. Alude-se nele a dois costumes medievais, o de cortar as “saias por vergonhoso lugar”, que se aplicava às prostitutas, e à morte do cozinheiro “sob as saias do meu brial”, que significa sob a minha protecção, o que é uma violação grave das prerrogativas da nobreza.
- Mal me quieren en Castilla
los que me habían de aguardar;
os hijos de doña Sancha
mal amenazado me han,
que me cortarían las faldas
por vergonzoso lugar,
y cebarían sus halcones
dentro de mi palomar,
y me forzarían mis damas,
casadas y por casar;
matáronme un cocinero
so faldas de mi brial;
si desto no me vengais,
yo mora me iré a tornar.
Allí habló don Rodrigo,
bien oiréis lo que dirá:
- Calledes, la mi señora,
vos no digades a tal,
de los Infantes de Salas
yo vos pienso de vengar;
telilla les tengo ordida,
bien se la cuido tramar,
que nacidos y por nacer,
dello tengan que contar.